2025-04-24
IDOPRESS
Foto do Papa Francisco em missa na Catedral de Buenos Aires — Foto: Sarah Pabst/The New York Times
À medida que os argentinos se despedem do Papa Francisco,o luto dos fiéis foi aprofundado por uma tristeza persistente,uma pergunta que paira no ar de Buenos Aires: por que seu filho nativo nunca voltou para casa?
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— Tenho que ser honesta,não gostei que ele nunca tenha vindo à Argentina — disse Laura Aguirre,de 50 anos,caixa de padaria,após participar de uma missa em homenagem ao primeiro Papa latino-americano,horas após sua morte.
Do lado de fora da Basílica de San José de Flores,a poucos quarteirões da casa onde Francisco passou a infância em Buenos Aires e da igreja onde ele disse ter sentido pela primeira vez o chamado ao sacerdócio,muitos especulavam que evitar a política foi o motivo de a Argentina não estar entre os 68 países que ele visitou durante seu papado de 12 anos — apesar de todos os presidentes e líderes católicos locais terem feito convites.
— Ele não queria que nenhum presidente se envolvesse com a imagem dele,dizendo 'fui eu quem trouxe o Papa' — disse Sebastián Morales,37 anos.
Francisco teve,de fato,uma relação tensa com os presidentes argentinos durante seu pontificado.
Como arcebispo de Buenos Aires,ele entrou em confronto com a ex-presidente Cristina Kirchner sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo,embora os dois tenham se reconciliado quando ele se tornou Papa. Ele também desaprovava algumas políticas de direita do ex-presidente Mauricio Macri. E,em 2020,se opôs veementemente à legalização do aborto,aprovada pelo Congresso sob o governo do presidente Alberto Fernández.
O presidente Javier Milei é recebido pelo Papa Francisco no Vaticano. — Foto: HANDOUT/VATICAN MEDIA/AFP
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O atual presidente da Argentina,Javier Milei,frequentemente insultava o Papa antes de ser eleito,chamando-o de "imbecil" por sua defesa da justiça social. Posteriormente,pediu desculpas e os dois se encontraram no Vaticano no ano passado. Milei planeja comparecer ao funeral de Francisco no sábado.
Morales,que disse ter conhecido o futuro Papa há quase 20 anos enquanto vivia nas ruas e lutava contra o vício em drogas,lembrou como Francisco,então Jorge Mario Bergoglio,ofereceu-lhe uma xícara de chá e o convenceu a entrar em um programa de reabilitação mantido pela Igreja.
— Quando eu era garoto,contei minha dor para ele,e ele abraçou essa dor,ele abraçou minha tristeza — disse Morales.
Quando o tema de retornar à Argentina como Pontífice surgia em entrevistas,Francisco frequentemente brincava: "Passei 76 anos na Argentina. Já não é o suficiente?".
Quando Francisco se tornou Papa,sua ascensão foi celebrada com alegria nas ruas de Buenos Aires,mas,ao longo dos anos,seu brilho foi diminuindo. Logo após sua eleição,98% dos católicos argentinos tinham uma visão positiva dele; esse número caiu para 74% em 2024,segundo o Pew Research Center.
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Autoridades da Igreja frequentemente enfatizavam que o Papa acompanhava de perto a Argentina desde o Vaticano.
— O que me resta é a certeza de que ele sempre esteve conectado à Argentina — disse o padre Patricio Ossoinak,sacerdote auxiliar da Basílica de San José. — Ele não pôde vir pessoalmente,mas sempre esteve conosco,e sabemos que sempre estivemos em seu coração.
Ainda assim,para muitos,sua ausência foi dolorosa.
Análise: Na Argentina,Francisco não foi uma unanimidade
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Carregadores,ao lado de Guardas Suíços,carregam o caixão do Papa Francisco — Foto: AFP
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Procissão com caixão do Papa Francisco passa por corredor de fiéis na Praça São Pedro — Foto: Vatican Media/Reprodução
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Carregadores,ao lado de guardas suíços,carregam o caixão do Papa Francisco durante o transporte da capela de Santa Marta para a Basílica de São Pedro — Foto: AFP
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Guarda Suíça monta guarda em frente à Basílica de São Pedro,no Vaticano,antes da chegada do corpo de Francisco — Foto: Alberto Pizzoli/ AFP
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Carregadores,carregam o caixão do Papa Francisco — Foto: AFP
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Detalhe das mãos do Papa Francisco em seu caixão aberto — Foto: Vatican Bews/ AFP
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Caixão passa pelo Arco dos Sinos e entra na Praça São Pedro — Foto: Vatican Media/Reprodução
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Camerlengo em frente ao caixão do Papa Francisco na Basílica de São Pedro — Foto: Andrew Medichini/POOL/AFP
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Caixão do Papa Francisco posicionado em frente ao Altar da Confissão da Basílica de São Pedro — Foto: Tiziana Fabi/AFP
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Corpo do Papa Francisco é posicionado do altar da Basílica de São Pedro — Foto: Vatican Media/Reprodução
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Publicidade Corpo do Papa Francisco foi levado para a Basílica de São Pedro,que ficará aberta aos fiéis
Mesmo que Francisco estivesse preocupado com a possibilidade de uma visita ser politizada,"ele deveria estar acima disso",disse Marcela Giménez,de 73 anos,uma vendedora aposentada de perfumes,enxugando as lágrimas ao sair de uma missa em sua homenagem na Basílica.
— Com tudo o que ele fez aqui,realmente não consigo entender — disse.
Outros levaram sua ausência com mais serenidade.
— Ele não era o papa da Argentina,era o papa do mundo — disse Rocío Sánchez,uma estudante de arquitetura de 19 anos. — Ele não nos pertencia.
O cardeal Bergoglio deixou a Argentina em 2013 para o conclave que o escolheu como sucessor de Bento XVI. Ele nunca retornou,ao contrário de seus dois antecessores. O Papa João Paulo II,o primeiro Pontífice não italiano em séculos,visitou sua terra natal,a Polônia,menos de um ano após sua eleição em 1978,enquanto Bento XVI viajou para a Alemanha em sua primeira viagem ao exterior,em 2005.
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Algo que aumentou a frustração de muitos argentinos foi o fato de Francisco ter estado tão perto tantas vezes. Ele viajou para países vizinhos como Brasil,Chile,Paraguai e Bolívia. Também visitou outras partes da América do Sul,incluindo Peru,Equador e Colômbia.
— Isso é algo que dói muito — disse Elida Galli,de 85 anos. — Me dói que ele não tenha conseguido vir,que tenha ido a tantos países próximos,mas não aqui.
Católicos argentinos acendem velas em homenagem ao Papa Francisco — Foto: Sarah Pabst/The New York Times
Guillermo Oliveri,secretário de Assuntos Religiosos da Argentina de 2003 a 2015 e novamente de 2019 a 2023,classificou a ausência do Pontífice como "a pergunta de um milhão de dólares". Após diversas conversas com Francisco,ele acredita que o motivo esteja na "famosa divisão política" do país entre esquerda e direita.
Fortunato Mallimaci,sociólogo e especialista em religião,professor emérito da Universidade de Buenos Aires,disse que,embora questões internas possam ter influenciado a decisão de Francisco no início do papado,"mais tarde,acho que ele queria ser lembrado mais como Francisco do que como Bergoglio".
Alguns que conheceram o papa disseram também que ele se sentia incomodado com a forma como suas ações como Pontífice eram frequentemente analisadas em seu país natal.
— [A Argentina tem sido tomada por uma] polarização cada vez mais profunda,e ele acabou no meio disso sem querer — disse Roberto Carlés,advogado com laços próximos com o Papa e que foi embaixador da Argentina na Itália de 2020 a 2023. — E ele sofreu com isso. Sofreu,porque representa exatamente o oposto do que ele promoveu durante toda a sua vida.
Papa Francisco com a bandeira argentina durante visita ao Rio. em julho de 2013 — Foto: Arquivo/AFP
Carlés disse que Francisco,mais tarde em seu papado,"sentiu o desejo de voltar à Argentina",o que acabou não dando certo,mas que ele disse saber que era um desejo.
Ele contou que o Papa ficava frustrado com o fato de gestos dirigidos à comunidade católica global serem frequentemente interpretados sob uma ótica política local.
— Isso o incomodava,que coisas que ele fazia,com significado claramente mais amplo e universal,fossem vistas como mensagens políticas para a realidade específica do nosso país — disse Carlés.
Francisco explicou que uma visita à Argentina fazia parte do plano de uma viagem ao Chile em 2017,mas foi adiada por conflitos de agenda. Mais recentemente,ele expressou publicamente interesse em visitar o país no ano passado,mas continuava demonstrando receios sobre como sua presença poderia ser interpretada politicamente.
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— Não há uma recusa em ir. Não,de forma alguma. A viagem foi planejada,estou aberto à oportunidade — disse Francisco em uma entrevista de 2023 ao site argentino Infobae.
Alguns argentinos disseram que Francisco deveria ter deixado de lado suas preocupações e atendido ao desejo de tantos que queriam recebê-lo de volta.
— É uma pena. É doloroso. Difícil de entender — disse Mónica Andrada,de 65 anos,na Catedral de Buenos Aires,acrescentando que trabalhou ao lado de Francisco como voluntária em uma cozinha comunitária.
Joel Acuña,de 34 anos,estudante de magistério,comparou uma possível visita papal à euforia que tomou conta do país quando a seleção nacional venceu a Copa do Mundo de 2022.
— Ele teria dado ao povo argentino algo que está nos faltando — disse Acuña,após assistir a uma missa na segunda-feira em um bairro pobre de Buenos Aires que Francisco costumava visitar. — Esse tipo de alegria é algo que a gente realmente precisa.