2025-03-05
HaiPress
Foliões do bloco Boitatá usam placas em protesto a favor de Igor Melo que foi baleado por PM — Foto: Gustavo Stephan / Riotur
GERADO EM: 04/03/2025 - 20:16
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A categoria “enredo afro” me soa sempre como um pleonasmo,algo como “feijoada brasileira” ou “fado português”. Ninguém é obrigado a nada,mas escolher honrar e celebrar a vida de mestres como Clementina de Jesus,Laíla,Milton Nascimento e Malunguinho é também defender a vida de anônimos como Igor Melo e Thiago Marques. É a nossa forma de fazer justiça,de “acender tudo que for de acender”. Se não for assim,como disse Milton Cunha,falaríamos de quem,da Branca de Neve,de Donald Trump?
A minha revolta tem sido grande e não peço desculpas por ela,a minha revolta é do tamanho da minha vontade de viver. Eu ainda estava nas comemorações do meu aniversário,na última segunda-feira,quando a notícia de que Igor Melo havia sido alvejado pelas costas por ser “confundido” com um assaltante chegou. Igor é estudante universitário e tem pelo menos três trabalhos.
Ele e Thiago ainda permaneceram mais de 24 horas sob custódia,porque a presunção de inocência não existe neste país,e família e amigos tiveram que lutar para provar que eles não eram assaltantes de celular.
Sabe,meu novo hobby é assistir a vídeos rasos sobre temas profundos como filosofia,psicologia e outros,na hora do almoço. Na segunda-feira,o algoritmo tinha me sugerido um vídeo sobre Carl Jung e foi bonito,até anotei frases do tipo “você não é aquilo que aconteceu com você,e sim o que você resolve fazer depois disso”.
Pensei em mim e me orgulhei por ter decidido,neste ano,voltar a ser alguém que comemora aniversários. Quem lê esta coluna há mais tempo (este mês serão nove anos!),sabe que demorei a voltar a comemorar meu aniversário. Eu estava lá ouvindo aquele vídeo aleatório enquanto lavava a louça e naquela hora eu amei Jung,amei o carnaval e o enredo da Portela,que este ano homenageia Milton Nascimento e diz que “quem acredita na vida não deixa de amar.” Naquela hora,o meu peito era pura esperança carnavalesca.
Mas depois,quando recebi a notícia do Igor,odiei Jung e o carnaval e o meu aniversário. Naquela hora,o amor e a esperança me pareceram grandes privilégios. A possibilidade de ser quem a gente deseja ser me pareceu uma utopia. Quando alguém perde um rim voltando para casa depois do trabalho,nada mais importa.
Eu me imaginei conversando com o Igor e dizendo a ele com a cara mais lavada do mundo: sabe,você não é aquilo que aconteceu com você,e sim o que você resolve fazer depois disso. Na segunda-feira,eu senti tanta raiva que,se o Igor quisesse tacar fogo no Rio de Janeiro,eu estaria ao lado dele com uma tocha na mão. Mas não,o Igor fez vídeo dizendo que estava melhor,sorriu,pediu orações,agradeceu à família e aos orixás. Igor pediu por justiça.
Ninguém é o mesmo depois de sair do trabalho e levar um tiro nas costas. Eu digo por experiência que nenhuma família é a mesma,nenhuma mãe,nenhum pai,nenhum filho,filha,esposa,marido. Ninguém é o mesmo. Eu não sou a mesma,mas eu oro para que a gente continue tentando ser. Não o que o trauma,o racismo e a violência tentam fazer de nós,mas o que a gente deseja ser,o melhor de nós.