2024-08-28 HaiPress
O Flipetrópolis teve início em 2024: evento na região serrana,como todos os outros de Afonso Borges,é financiado por meio da Lei Rouanet — Foto: Divulgação/Aline Reis
GERADO EM: 28/08/2024 - 04:31
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O jornalista e gestor cultural mineiro Afonso Borges vive recebendo convites para tocar festivais literários no interior do Brasil. Dá para entender por quê. Ele criou os festivais de Araxá (em 2012),Itabira (2020),Paracatu (2023) e Petrópolis (2024),que têm levado nomes ilustres da literatura brasileira contemporânea (de Itamar Vieira Junior a Conceição Evaristo) ao interior de Minas e à Região Serrana do Rio. No entanto,não é tão fácil trazer um festival literário assinado por Afonso Borges à sua cidade — e até um fabricante de cachaça do Norte de Minas já tentou. Sempre que é consultado,Borges rebate: “Quem vai pagar?”
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A pergunta também tem razão de ser. Os festivais de Borges estão entre os poucos eventos literários do país que não pedem contribuição das editoras,pagam todas as despesas dos autores (deslocamento,hospedagem e alimentação) e ainda oferecem um cachê proporcional à idade do convidado,que varia de R$ 2 mil a R$ 5 mil. Os quatro festivais são patrocinados,via renúncia fiscal pela Lei Rouanet,por grandes empresas que atuam nas cidades: as mineradoras CBMM (Araxá),Vale (Itabira),Kinross (Paracatu) e pelo Grupo Águas do Brasil (Petrópolis).
Em conversa por vídeo com o GLOBO,Borges afirma que remunerar os autores é questão de honra desde que começou a entrevistá-los no “Sempre um papo”,criado em 1986.
— Quando eu era pobre e não tinha dinheiro nenhum,já pagava os autores. A primeira passagem aérea que comprei foi para o Décio Pignatari (1927-2012),em 17 prestações. Meu nome foi parar no SPC — diz o produtor cultural,que hospedou o poeta paulista em sua própria casa,em 1986.
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Borges estreou um protótipo do “Sempre um papo” quando o escritor Oswaldo França Júnior (1936-1989) lhe pediu ajuda para promover seu novo livro. Os dois fizeram um bate-papo num bar em Belo Horizonte. À época,Afonso Borges era músico e vendia livros de poemas pelos bares da cidade. Nas décadas seguintes,o “Sempre um papo” extrapolou os limites da capital mineira e se tornou uma vitrine literária do país. Já recebeu até ganhadores do Nobel de Literatura,como a americana Toni Morrison,o português José Saramago e o peruano Mario Vargas Llosa. Os programas são abertos ao público em Belo Horizonte e transmitidos pela internet.
— Em vez de ir para o Rio ou São Paulo atrás dos autores,eu os trouxe para cá — diz o mineiro,que também é escritor: acaba de lançar “Tardes brancas” (Autêntica),reunião de 26 contos e cinco poemas.
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Quando começou a fazer festivais,Borges chamava autores de quem já era próximo. No primeiro Fliaraxá,os destaques foram Luis Fernando Verissimo,Ziraldo e Zuenir Ventura. O tema foi “Juventude,literatura e experiência” — o pai do Menino Maluquinho até achou que a terceira palavra era uma indireta à maturidade dos três,que beiravam os 80 anos. No ano seguinte,o festival homenageou Adélia Prado. A poeta mineira,aliás,é um pouco culpada pela criação,no ano passado,do Fliparacatu,que começa nesta quarta-feira (28) cujo tema é “Amor,literatura e diversidade” (os festivais do mineiro sempre se organizam ao redor de três palavras de ordem).
Criador do programa “Sempre um papo”,que recebeu nomes como a americana Toni Morrison,o português José Saramago e o peruano Mario Vargas Llosa,Afonso Borges expandiu a atividade literária para os festivais em 2012 — Foto: Divulgação/Aline Reis
Ao GLOBO,o prefeito de Paracatu,Igor Santos contou que já sonhava em levar um festival literário para a cidade antes mesmo de cogitar uma carreira política. Em 2016,ele assistira a uma edição do “Sempre um papo” em Belo Horizonte com Adélia Prado e,ao assumir a Prefeitura,em 2021,ligou para Borges (e já havia quem pagasse a festa,a mineradora Kinross). Até domingo (1º),o Fliparacatu recebe cerca de 60 autores,como Eliana Alves Cruz,Jeferson Tenório e a italiana Igiaba Scego.
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Vários deles já passaram,este ano,por Petrópolis (em maio) e Araxá (em junho). A editora Simone Paulino,da Nós,conta que inicialmente não entendia por que tantos nomes se repetem na programação dos festivais de Borges. Depois,diz ela,percebeu que o objetivo era incentivar o estreitamento dos laços e dar continuidade às conversas. E bota conversa nisso: todos os autores são incluídos no grupo de WhatsApp Literatura e Liberdade (274 membros),onde o papo nunca tem fim. O grupo não aceita jornalistas (com exceção do colunista do GLOBO Ancelmo Gois),“porque a gente fala muita bobagem”,justifica Borges.
— O diferencial de Afonso é a curadoria que preza de verdade pela diversidade e não por questões mercadológicas — diz Simone.
Os festivais de Borges são transmitidos on-line e promovem concursos de redação entre os estudantes com prêmio em dinheiro. A curadoria é sempre dividida com o escritor Tom Farias e o sociólogo Sérgio Abranches. Numa mensagem ao GLOBO,a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia descreveu os eventos como “oportunidades valiosas para repensar a Humanidade”,que “revitalizam sonhos civilizatórios” e tornam-se “momentos de reconexão em uma Humanidade muitas vezes desencontrada”. A ministra,que este ano participou dos festivais de Petrópolis e Araxá (de forma remota),também vai ao Fliparacatu.
Borges diz que parcelas do mercado editorial,cujo olhar raramente ultrapassa o eixo Rio-São Paulo,ainda consideram seus festivais “pequenos”. É puro “preconceito” devido ao tamanho e à localização das cidades,diz ele:
— Eu aí faço a seguinte pergunta: que festival é maior,um de São Paulo que só acontece para quem está ali ou um que traz os principais escritores brasileiros contemporâneo e transmite tudo pela internet?